quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009


“Não me lembro do nome, mas recordo-me da figura. Adolescente ainda, corpo sem graça, cara banal, nada que atraísse ou convidasse a um sorriso mais quente, olhar ou afago. Tumor na cabeça, de grau moderado, condenava-a à morte mas não para já, para mais logo, na escala do tempo que é própria dos médicos. Tolerou a radioterapia sem um queixume, com a resignação dos pobres. Sempre a vi sozinha. Sul-americana, da Colômbia talvez, vivia com uma avó velha sem força ou dinheiro para a acompanhar. Pontual para as sessões de quimioterapia ou para o confessionário da assistente social, cumpria as regras, baixava a cabeça. Pouco a pouco tornou-se invisível. Não falava, não chorava, como uma sombra existia sem provocar em mim qualquer sentimento particular. Apenas um corpo, sem cabelo, quase sem voz e sem adereços.
Claro que me interessava pelos seus estudos, pela sua vida, mas de uma forma distraída, porque tinha que ser. Na cama do Hospital era como cliente em mesa de restaurante, servida com um sorriso de circunstância e o enfado de uma maçada. Todos os dias a via, todos a esquecia. Não transportava para casa a memória daquela figura, sem garra ou chama, que de tão banal, em Nova Iorque, quase ofendia. O tempo aproximava-se, confesso, mais depressa do que esperava. O cancro, como todo o mundo, não tinha com aquela rapariga qualquer cuidado, e entretinha-se, a passos largos, mas com segurança, a destruir-lhe o cérebro, fazer troça dos membros que, pouco a pouco, como bonecos sem pilhas, pendiam imóveis. No meu intimo, atribuía-lhe culpas pelo avanço da doença. Falta de respeito não melhorar.
No entanto, tinha para mim o olhar dos cães, de barriga para cima, patas encolhidas, suplicando uma festa. Fiel, caminhava ao meu lado, e eu nem a via.
Como querias que adivinhasse? E’ tão difícil pôr-me na pele dos feios. Se fosses bonita... se fosses bonita a doença parava para pensar. Hesitaria decerto, envergonhada. Contigo não, apaga-te como palavra mal escrita, resto do prato. Uma vida como um engano. Desculpe, sim? Lixo de rua que o jacto de água empurra para a valeta. Conta mal feita sem prova dos nove.
No ralo da banheira cria-se um vácuo. A água imita o tornado, acelera o movimento, gira, gira, e some-se para o centro da terra. Assim eras tu. Desaparecias, sugada, liquida, por uma fenda no chão que eu não via, mas pressentia. Como querias que adivinhasse? E’ tão difícil pôr-me na pele dos feios. Enquanto acabavas, nos instantes em que te sumias pelo o ralo da morte, o teu olhar era de espanto e de raiva. Descobri então que tinhas sonhos, ilusões, fantasias. Decerto sonharas com amores-perfeitos, confortos burgueses, filhos, passado. E também com um medico jovem e competente, capaz de apagar, como um rascunho, a doença que te não pertencia.
Durante anos sonhei com uma rapariga vestida de chita que tinha caído ao mar. os óculos quebrados não a deixavam ver com nitidez o rapaz que brincava nas rochas. Para ele estendia os braços e rogava ajuda, mas o rapaz negava e, com voz sumida, virava a cara e dizia: «não posso». E no entanto, o sol brilhava, a maré era baixa, e havia camarões pequeninos nas poças de água que as rochas mantinham na cova da mão. Desapareceste engolida por areia movediça. Assustada estendias para mim os braços erguidos como a criança que roga por colo. Não peguei em ti, não tinha força. Os meus braços caídos, inúteis, inertes de nada serviam.
Tanto ódio nesse olhar. Ouve, não pensei que te zangasses, que houvesse revolta, que não aceitasses... Que queres, não posso. Estendia-te a mão se conseguisse. Juro que estendia. A doença não deixa. A vida esvai-se como água num ralo e tu vais cair no centro da terra. Vê se percebes, não te posso ajudar, fechou o guichet, falta o impresso, não tenho troco-mas neste momento, se quiseres acredita, no momento preciso em que te somes para o fundo, reparei que existias.” (Nuno Lobo Antunes)
Post: Sandra'Antunes

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